Alguns álbuns são tão pessoais e autobiográficos para um artista que chegam a ser quase que terapêuticos. Isso porque, além de ser uma forma de passar mensagens, a música também é capaz de transformar os mais diversos sentimentos e cicatrizar feridas – assim como a arte, de modo geral. Esse é o caso do novo álbum de Ana Cañas.
Lançado na última sexta-feira, dia 4, “Vida Real” reúne ao longo de suas 11 faixas algumas fases da vida da artista, abordando temas que vão desde o luto até os diferentes estágios que fazem parte das relações amorosas, bem como as eras musicais de seus quase 20 anos de carreira, com forte presença do violão e da gaita. Além disso, também estão presentes no disco Ivete Sangalo, Ney Matogrosso e Roberta Miranda em três parcerias inéditas, e Nando Reis, como compositor da única faixa não escrita por Ana Cañas.
Antes do lançamento de “Vida Real”, a Nação da Música conversou com Ana Cañas sobre o conceito deste que é seu primeiro álbum autoral em 7 anos, as histórias reais contadas nas faixas e como se deu a parceria com cada um dos artistas convidados, além de novidades sobre sua nova era.
Entrevista por Natália Barão
————————————– Leia a entrevista na íntegra:
Oi Ana, tudo bem? Prazer!
Ana Cañas: Oi, querida! Prazer também! Tudo ótimo, e você?
Tudo ótimo também! Como você está?
Ana Cañas: Tô ótima! Prazer também.
Que ótimo! Eu vi que no começo de abril vem aí seu novo álbum, “Vida Real”, seu primeiro autoral de inéditas em um tempinho. Eu queria saber o que esse álbum significa pra você nesse momento?
Ana Cañas: Olha, ele significa muita coisa porque são 7 anos sem lançar um disco autoral, e nesse ínterim eu vivi o Belchior, né? E eu aprendi muitas coisas com o nosso querido maravilhoso Antônio Carlos Belchior, foram 180 shows e essa turnê me pôs pra pensar sobre muitas coisas. Sobre a perenidade das canções, a potência dos versos, o cuidado com as palavras e, principalmente, o Belchior tinha uma coisa muito legal e muito linda que era falar sobre as coisas que ele vivia. Canções como “Fotografia 3X4”, “Paralelas”, “Coração Selvagem” e “Divina Comédia Humana” são muito autobiográficas e isso sempre bateu pra mim. Eram as canções que eu mais me emocionava e chorava cantando. Então, quando eu decidi fazer o “Vida Real”, falei cara, eu vou praticar esse ensinamento falar de si mesmo, porque quando a gente fala de nós mesmos, parece que a identificação do público é maior. É muito curioso isso, porque como compositor, você pode pensar assim “ah, vou falar tal assunto porque acho que isso vai interessar todo mundo”, mas não, curiosamente não é assim.
Quanto mais no seu íntimo você vai, na sua verdade, nas suas experiências mais dolorosas ou mais maravilhosas de paixão, arrebatamento ou amor, mais essa identificação acontece. Porque eu sentia isso com as canções do Belchior, eu me identificava com a forma muito particular dele falar. Então, o “Vida Real” é um disco muito pessoal: tem canção pro meu irmão que faleceu, tem canção pra várias paixões vividas e não vividas, tipo “Amiga, Se Liga”, com a Roberta Miranda, que fala de quando eu fui amante de um cara casado. Tem várias coisas reais nesse disco, especialmente a primeira música, que é super autobiográfica e explica um pouco a história da minha vida, de quando eu morei no pensionato com profissionais do sexo e elas me ajudaram muito a sobreviver dividindo prato de comida comigo. Era muito foda, eu passei por muita coisa que ainda não tinha conseguido colocar nas canções, e dessa vez eu falei “não, agora chegou a hora de eu colocar tudo pra fora mesmo”. E tá aí “Vida Real”.
Inclusive, eu vi uma aspa sua no release que eu achei muito interessante sobre esse ser o álbum que “melhor te traduz numa completude de metaversos”. Queria saber de que forma isso acontece, ainda mais que ele reúne várias Anas: a da gaita, que já aparece ali em “Vida Real”, a do violão, que está bem presente nesse disco…
Ana Cañas: Então, Natália, nós mulheres somos muitas, né? Somos muitas pra sobreviver, pra existir com o tanto de cerceamento que tem; a gente se vira, né? Então tem a Ana do violão, tem a Ana do pop, tem a Ana que sonha em tocar em rádio, tem a Ana que quer pegar o violão e fazer um show sozinha com seus violões, tem a Ana do “Pra Você Guardei o Amor” com o Nando Reis… então eu tentei reunir nesse disco todas elas e acho que consegui. Eu tô muito feliz com o resultado final, adoro esse disco. Tem a Ana que canta com a Ivete, porque eu amo a Ivete! Ela é muito real, ela é muito foda. Você conhece o vídeo do Jamaico?
Eu amo esse vídeo!
Ana Cañas: Esse vídeo é o estatuto da minha existência! Quando eu vi o Jamaico, eu falei cara, eu tenho que gravar um dia com a Ivete! E ver ela, a Roberta e o Ney, que foram precursores dos seus gêneros musicais, gravarem músicas que eu escrevi é motivo de muita alegria pra mim como compositora. A Roberta é a primeira mulher compositora dentro do sertanejo a fazer sucesso e isso é muito forte! São três artistas que eu admiro e amo muito, não só no plano artístico, mas no pessoal também; duas mulheres fodas, um cara foda. Então, eu também celebro demais esse disco por esses encontros. E acho que tá tão ajeitado cada canção pra cada um deles, os arranjos, por exemplo, “Brigadeiro e Café”, que é com Ivete, tem uma inspiração em Claudinho e Buchecha, que eu sempre amei muito e falei pro Dudu, meu produtor, que queria uma música no disco com aquele funk do passinho. Então tô muito feliz com os três convidados.
Falando até sobre isso, você falou um pouquinho já da Ivete, mas eu ia perguntar justamente como surgiu a ideia de chamar tanto ela, quanto o Ney e a Roberta Miranda pra fazerem essas parcerias específicas no álbum.
Ana Cañas: Hoje a gente está num momento em que os feats têm uma importância até algorítmica, de alastrar mais o trabalho nas plataformas. Isso é muito legal, vejo isso de uma forma super positiva, mas acho que a gente tem que ter cuidado nas escolhas e eu tive muito cuidado nas minhas escolhas porque eu queria pessoas que eu admiro de verdade, não só aquele artista que vai te trazer play. A fundamentação desses convites veio da minha admiração real, do meu amor por eles, do Jamaico, entendeu? Pra mim o vídeo do Jamaico é o entendimento dessa conexão que ela tem com o público e eu também sou assim. Sou vereadora aqui da minha rua, conheço todos os porteiros; sou da vida real, eu adoro gente. Então, eu tenho uma identificação muito forte com a Ivete nesse ponto, além de também ter crescido ouvindo Banda Eva. Acho que daqui uns 20 ou 30 anos, quando eu olhar pra trás e pensar “pô, meu disco ‘Vida Real’ tinha Ivete Sangalo, Roberta Miranda e Ney Matogrosso”, eu nunca vou questionar nada. Vou saber que não fiz esses feats porque alguém ali estava num bom momento; eu fiz porque essa admiração que eu tenho por eles vai até o fim dos meus dias e até outras vidas.
Inclusive com o Ney eu sei que a sua relação já é antiga. “Derreti” foi o primeiro single a ser lançado, até com o clipe há algumas semanas. Por que essa faixa foi o lead single que abriu as portas de “Vida Real”?
Ana Cañas: Primeiro porque eu queria segurar na mão do Ney pra começar. Eu achava que fazia sentido estar de mão dada com ele, que é uma espécie de figura paterna artística pra mim. O Ney é um amigo de verdade, uma pessoa que faz parte da minha vida. Quando eu fiz a live do Belchior, por exemplo, ele foi a primeira pessoa a me escrever e falar “Ana, cante o Belchior”. E várias outras coisas, quando eu estava num momento muito difícil, vivendo o luto do meu pai, ele falou que eu estava pegando pesado e que tinha que ter o coração mais leve. Então ele tem uma importância muito grande na minha vida. Fazia sentido assim começar “Vida Real” com “Derreti” no sentido até de abrir alas mesmo, de ser como o Ney diz “olha, tô com você, vamos lá, pega na minha mão”, super freudiano, junguiano, psicanalítico (risos). Mas é total, sabe? E com o Ney nunca vai dar ruim, né? A canção é gostosa, é sexy, tem esse latin pop que tem um eco de Rita Lee ali com Roberto de Carvalho…
Era exatamente essa a minha próxima pergunta! Ouvindo eu senti muitas semelhanças com a melodia de “Mania de Você”, e até um pouco na proposta da letra.
Ana Cañas: É então, e é engraçado que essa letra eu escrevi antes do Belchior e era pra ser uma balada. Mas aí o Dudu Marote, produtor, trouxe a ideia da gente transformar ela nesse latin e eu super abracei. Achei incrível e fica como uma homenagem pra Rita, que é uma mulher que dispensa qualquer coisa que a gente possa falar sobre a importância dela nas nossas vidas, assim como a Alanis e algumas outras. Eu abracei essa ideia de homenagear a Rita com esse arranjo e achei ótimo porque ela é realmente uma mulher muito importante na minha caminhada, desde sempre. Estive com ela uma vez num camarim, foi um momento que eu nunca vou esquecer.
Tenho certeza! Ela é icônica e eterna. Sobre baladas, a parte mais central do álbum – que eu fiquei muito feliz inclusive de ter escutado – eu notei que fala bastante sobre as relações humanas, em especial amorosas, e percebi uma pequena “evolução”: “Derreti” tem essa coisa da conexão carnal, mas aí “Quero Um Love” já é mais sobre quando a coisa evolui para um sentimento…
Ana Cañas: Ah, que legal você perceber isso! Você é a primeira pessoa que me fala isso! E foi totalmente pensado.
Ai que bom! Eu senti também que outras trazem a beleza do cotidiano de uma vida a dois, que é algo presente nas relações também. Considerando toda essa narrativa, qual você diria que é a sua perspectiva sobre o amor na vida real?
Ana Cañas: Olha, eu já vivi todos os tipos de relações que você pode imaginar com mulheres e com homens, e acho que vai muito do momento que a gente está. Já fui casada dez anos, já vivi uma fase que eu peguei todo mundo desapegadamente – que foi na pandemia, que a gente tava subindo pelas paredes (risos) – e saí com muita gente mesmo, até com fã, porque queria experimentar essa liberdade que os homens têm na sociedade de não serem julgados por isso e nós somos, né? Sempre somos. Foi uma coisa muito interessante que eu fiz, mas que me deu um vazio existencial também. Eu saí de um namoro recente, e agora estou solteira de novo, já passando meu rodinho, bem plena (risos). Então acho que não tem um ideal; o ideal é a gente estar feliz e alinhado com o momento que estamos vivendo.
Acho que em se tratando de paixão e amor, não tem como cravar nada em pedra, porque, amiga, quando eu me vi dentro de uma relação sendo amante de um cara casado, rasgando e jogando pro alto toda a minha cartilha do feminismo… porque eu só me fodia, você só se humilha, só vive de migalha, só chora. E foi uma paixão terrível que eu não consegui controlar, sabe? Eu nunca tinha vivido isso, perdi o freio totalmente. Então já vivi tantas coisas que acho que não tem regra; às vezes a gente vai quebrar a cara, às vezes vai encontrar uma pessoa massa que vai ser um super companheiro ou companheira… acho que é sobre você buscar a felicidade. Mas uma coisa que eu acho legal é a gente sempre estar lendo sobre psicanálise, que é uma coisa que me ajuda muito, Jung, Freud… eu leio muito Jung e entendo que quanto mais a gente se conhecer, mais podemos ter relações equilibradas e saudáveis. O famoso “conhece-te a ti mesmo”, do Sócrates; você está de frente para as suas sombras e aí acho que a terapia ajuda muito. Acho que é muito legal quem puder fazer, quem tiver acesso à terapia, é uma coisa muito positiva nas relações que a gente constrói na vida; não só namoro, mas também amizade e família. Essa é a resposta que eu tenho hoje; amanhã eu já falaria outra coisa e assim a gente vai (risos), mas a resposta de agora é tipo essa.
Tá mais do que válida, tá? Eu achei ótimo e chique inclusive, citando Freud, Sócrates, Jung! (risos).
Ana Cañas: A gente tem que estudar né, amiga? (risos).
Certíssima! Já que você comentou dessa situação que você chegou a ser amante, eu tinha pesquisado sobre isso e quando escutei “Amiga, Se Liga” pensei “acho que é sobre isso…”
Ana Cañas: É total sobre isso. “Amiga, se liga, ele só diz te amo na cama / sei que você se apaixonou por esse boy casado, mas me faz o favor”. Na verdade, eu participei de um festival no Rio onde cantei cinco músicas da Marília Mendonça e fiquei apaixonada por ela, fiquei enlouquecida. Na época que eu fiz esse show, eu era amante do cara, e quando saí da relação – depois de seis meses – escrevi a música no intuito de cantar com a Marília. Só que aconteceu aquela tragédia, aquela coisa super triste e falei cara, só pode ser a Roberta Miranda. Porque a Marília nem existiria se não houvesse a Roberta, a própria Marília dizia isso, e a Roberta chama a Marília de “minha semente”, o que eu acho lindo. Então, pra mim, era uma extensão porque a Roberta é muito precursora do feminismo dentro do sertanejo. Então, eu tô super feliz com essa faixa. Eu recebi hoje o meu teaser com a Roberta cantando e fiquei super emocionada. Ela é muito legal e muito real, assim como a Ivete, como o Ney; são pessoas muito livres de afetação, sabe?
Eu achei interessante essa faixa, particularmente porque primeiro que a história super dá uma música sertaneja, e eu gostei muito dessas referências da moda no seu estilo; acho que essa é a faixa mais diferente do conjunto do álbum, musicalmente falando. E queria saber se você já chegou a receber algum conselho muito bom da Roberta Miranda.
Ana Cañas: Olha, no tempo que eu passei com a Roberta ali no estúdio, ela falou muitas coisas lindas que eu vou guardar – até porque está tudo filmado. Então acho que mais do que ela falar qualquer coisa, foi estar na presença e sentir a energia dela, porque ela também é filha de pai alcoólatra, assim como eu também. A Roberta viveu uma história muito forte, ela perdeu um filho de uma maneira super traumática e terrível que ela conta nesse livro que lançou agora, parece que um cara deu um chute na barriga dela e ela perdeu o neném, sabe? Um negócio que eu não consigo imaginar! Então estar na presença da Roberta é sentir a força dela. Fazendo a ponte da Roberta Miranda com a Rita Lee, tem aquela música “Pagu”, da Rita, em que ela diz “sou mais macho que muito homem”, e acho que a Roberta cabe muito ali, de ter muita força, muita vida, muito peito, muita coragem. Ela é braba, ela vai! Os caras sacanearam ela pra caramba na história da música sertaneja, outros artistas roubaram música dela, então ela é um estatuto da força feminina dentro de um meio musical que é muito predominantemente masculino. Se você ouvir hoje as 50 mais tocadas do Spotify, cara, eu sempre vejo isso, são 45 homens. Às vezes tem uma Anitta, uma Ludmilla, uma Simone Mendes, uma Ana Castela.. mas 90% dessa playlist são homens. E se você vai na gringa ver as 50 mais tocadas do mundo, é muito diferente: é 20/30, 25/25. É super curioso como no Brasil existe uma predominância mesmo dessas questões ainda. Mas enfim, a Roberta é uma das mulheres que está no front, assim como a Rita, a Ivete que também com a alegria no seu axé, com a sua Banda Eva Ali, sabe, também é uma mulher que desbravou muita coisa. E o Ney não precisa nem falar, né? Quem nasce nos Secos e Molhados, em plena ditadura…
Falando sobre força feminina, girlpower, mulheres no topo, eu gostei muito da faixa “Toda Mulher é Além”, que traz esse olhar… não gosto de usar essa palavra “empoderado” porque para mim já está um pouco desgastada…
Ana Cañas: Já gastou! Estamos todas nessa fase, né?
Sim! Mas essa perspectiva de trazer esse olhar mais feminista já faz parte do seu trabalho há um tempo, inclusive, acho que uma das faixas que melhor traz isso é “Respeita”, que você lançou lá em 2017 e que teve um clipe super emblemático. Mas agora, em 2025, qual é o seu olhar para essas questões do feminismo e do lugar das mulheres?
Ana Cañas: Acho que eu estou num momento menos aguerrido, no sentido do front, porque eu já estive muito nesse lugar, não só do feminismo, mas da militância pela equidade à esquerda e tudo mais. E eu sofri muito, recebi muita ameaça de morte, a minha saúde mental ficou muito complicada. Então agora sinto que estou num momento, que acho que o Belchior me puxou um pouco, de vamos falar as coisas através da arte. Músicas como “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, “amar e mudar as coisas me interessa mais”, essa em especial fez tanto sentido pra mim! Porque estar no front te exige uma energia muito raivosa, muito de militância aguerrida mesmo. E eu sou uma pessoa doce, amorosa, sou super da vibe do Jamaico (risos), então me adoeceu um pouco estar no front como eu estive, embora eu tenha muito orgulho do clipe de “Respeita”; 90 mulheres ali, Elza Soares, Maria da Penha… nossa, quando eu olho para trás eu falo: meu Deus, como é que eu realizei isso? Consegui reunir tantas mulheres incríveis! Mas agora estou num momento mais de dizer “toda a mulher é além”. Os versos dessa canção, “me apaixonei pelo professor de história” e “a liberdade é a mãe das que sonham” são mais filosóficos, mais poéticos e menos de dar a cara a tapa, porque eu já fiz isso também. Agora estou buscando o lado mais poético das coisas e a arte tem um caminho subjetivo que também é muito interessante, e por não ser tão literal, permite mais interpretações até das próprias mulheres. Como você mesma falou, o termo “empoderamento” está desgastado e eu sinto que a gente já tá numa outra fase do feminismo, por exemplo, de sororidade. Muito se fala de sororidade, mas eu, Ana, vou te falar que ainda vejo pouco na prática. Ainda vejo muitas mulheres competindo e se antipatizando. E a gente fala tanto sobre isso, sabe? Assim, claro, na natureza humana, a gente faz um comentário aqui, outro ali, ninguém é perfeito, mas por exemplo, quando eu conheço a namorada de um amigo meu, eu percebo o quanto ainda tenho que fazer de esforço pra ela não ter ciúmes da minha relação com ele, o quanto eu ainda tenho que ficar galgando “olha amiga, fica em paz que ele é meu amigo, é meu brother”. Então acho que já estamos na fase de perceber que a prática é mais difícil que a teoria. A Rita Lee é um norte pra mim nesse sentido, porque ela dizia “não sou feminista, eu sou a própria sua própria coisa encarnada” e é um pouco por aí. Falar menos, fazer mais; ter mais atitude e não tanta prosa, prosódia. É na prática que a gente vê a parada e é nesse momento que eu estou.
Eu me identifico bastante com tudo o que você falou, tenho essa visão também. Mas mudando um pouco de rumos agora, eu vi que esse álbum é autoral, mas que das 11 faixas, só uma não é composição sua, que é “O que eu só vejo em você”, do Nando Reis. Queria saber como essa música foi parar nesse álbum e se você chegou a considerar chamar o Nando pra fazer um feat, assim como você chamou o Ney, a Ivete…
Ana Cañas: Cara, eu tenho para mim que é um feat, porque é um disco que só tem músicas minhas e uma música que não é minha, mas que é um feat compositor. Eu achava que quatro feats no disco era muito, e como a gente já tem o “Pra Você Guardei o Amor”, queria dar espaço pra novas vozes, novos encontros. Então o jeito que eu encontrei de ter o Nando no meu disco foi esse, gravando uma música dele. Ele é um compositor que eu amo muito, um artista por quem tenho muita gratidão. Acho que “Pra Você Guardei o Amor” é uma das coisas mais lindas que eu fiz na minha vida. Então, pra mim, essa de agora é um feat, sabe? Esse foi um álbum tão bem pensado e tão construído durante 14 longos meses, e eu ter uma música dele no meio das minhas é como se fosse um feat compositor pra mim.
Eu fiquei muito curiosa com a parte que faz referência direta a “Vamos nos permitir”, do Lulu Santos.
Ana Cañas: A música original já é assim, né? Na original ele já cita o Lulu para homenageá-lo, então pra mim fica também essa homenagem, porque eu adoro Lulu. Pra mim, ele é o mestre do pop radiofônico da melhor qualidade, tem letras excelentes, eu amo tudo que ele representa, a fase que ele tá de estar assumido com o namorado dele, maravilhoso! Então é muito feliz a escolha da música. E é o que você falou, foi pensada essa progressão da relação dentro do disco que vai de “Derreti”, passa pra “Quero um Love”, “O que eu só vejo em você”, culmina ali na Ivete e voa, porque realmente são canções de relacionamentos, mas cada uma numa camada e vai havendo uma progressão. É muito legal você ter percebido isso. Mulheres inteligentes! (risos).
Ai, obrigada, Ana! Eu fico muito feliz sempre que recebo um álbum pra escutar antes, e mais ainda quando as minhas percepções fazem sentido! Eu vi que o nosso tempo infelizmente já está acabando, então vou tentar contemplar aqui uma coisa que eu queria muito saber. Além da parte das relações que está muito presente no álbum, como a gente comentou essa parte da progressão, outras músicas trazem olhares diferentes pra outras esferas da vida, como “Do Lado de Lá”, que fala sobre luto, e “Vai passar”. Queria saber quais foram os seus aprendizados no processo de composição desse álbum, já que algumas músicas foram escritas há algum tempo, e outras são mais recentes.
Ana Cañas: É curioso como essas duas canções têm chamado a atenção das pessoas. “Do Lado de Lá” eu fiz pro meu irmão, que faleceu. Foi uma morte super trágica, um acidente no mar, ele era muito jovem e eu escrevi essa canção em 2013. Então ela levou 12 anos para ser gravada. Mas como eu te falei, agora era o momento de botar essas dores pra fora na vida real. E “Vai Passar” foi escrita para um amigo meu que tirou a própria vida há dois anos atrás. Então achei que não tinha como eu fazer um disco chamado “Vida Real” e não ter passagens sobre morte. Eu sou espírita, então tenho essa convivência entre umbanda e espiritismo kardecista, então acredito muito em vida após a morte, reencarnação, colher o que plantamos… essas são canções que versam sobre isso porque é um assunto quase que diário pra mim. Estou sempre lendo, vendo vídeos no YouTube, como as lives do canal da Mônica de Medeiros, então não tem como, é super eu a espiritualidade, é um assunto central na minha vida. Acho muito importante que essas canções estejam lá, primeiro porque eu vejo o papel da arte de trazer conforto pras pessoas.
Já pensei várias vezes em como seria ter uma música que eu pudesse ouvir nos momentos em que perdi alguém, porque já perdi muitas pessoas que eu amo: meu pai, minha avó, esse meu irmão, alguns gatos, amigos, que se foram de formas trágicas. Então me veio essa vontade de deixar isso dentro de uma música pra, de repente, uma pessoa que perdeu alguém possa ouvir e se sentir abraçada também. E eu tô muito feliz que essas músicas existam dentro do disco, porque dentro do show do Belchior, quando eu contava a minha história em cima do palco, eu via o impacto nas pessoas. O meu começo de vida foi bem difícil, tinha dia que eu só tinha duas batatas pra comer, eu distribuí panfletos no farol durante um ano ganhando R$30 por dia e sempre tive muito orgulho disso. E foi dentro do show de Belchior que eu pude dizer pras pessoas que eu vim desse lugar e existi dessa forma. Eu tenho muito orgulho, porque se esse momento da minha vida me trouxe a música, eu só posso agradecer. E eu sempre falo no show: “se tiver alguém aqui hoje que estiver passando por um momento difícil, sinta o meu abraço, não desista, persevere” e a gente já teve relatos de pessoas que estavam pensando em tirar a própria vida, sabe?
Um amigo meu, o Thomaz, falou “cara, eu fui no seu show como um ato derradeiro, porque eu sou fã do Belchior, tinha comprado veneno de rato, ia chegar em casa, tomar o veneno e morrer, mas aí você contou aquela sua história em cima do palco e eu falei não, talvez esse momento, essa dor que eu tô sentindo, tenha um propósito maior”. Eu falo com ele até hoje, ele tá vivo, ele mora em Paraty, e é uma pessoa incrível! Eu sempre fico pensando que se um show nosso ajudou uma pessoa a ficar viva, então eu tenho que gravar essas canções, porque a gente não sabe como chega pras pessoas e como bate, num momento de vulnerabilidade, um artista que você admira falar um bagulho que você fala pô, só por hoje eu vou ficar bem, só por hoje eu não vou… – eu até me emociono – só por hoje eu não vou fazer nenhuma besteira.
Eu fiquei emocionada aqui também. Mas que bom que existem esses relatos! Acho que a relação que cada um tem com a música e com a arte, é sempre algo muito especial e que transforma vidas de fato. Então fico muito feliz de saber de você que relatos desse tipo chegaram, e com certeza chegam em outros artistas também, que acho que impulsiona a continuar, né?
Ana Cañas: Eu leio esses relatos até hoje. Hoje mesmo eu li uma mensagem de uma menina que foi no show de BH semana passada, contando como foi pra ela assistir o show, e fiquei super emocionada, gravei um áudio pra ela agradecendo. A gente não imagina o que está causando nas pessoas só de ser o que a gente é, sabe? O palco é um lugar muito especial, e da mesma forma que a Alanis mudou minha vida, que a Rita Lee mudou minha vida, que o Ney mudou minha vida, que a Billie Holliday mudou minha vida, quem sabe um dia eu possa contribuir também pra vida das pessoas, e assim vamos. Amanhã surge uma menina que ouviu uma música que eu fiz ou que outra compositora fez e fala “mano, a Ana tá sendo muito real aqui, então eu vou ser também!” e assim a gente vai. A arte é esse lugar que tudo pode, no sentido de alargar a existência, como diz o Ferreira Gullar: “a arte existe porque a vida não basta”, e já que a vida presta, segundo a filósofa Fernanda Torres (risos), então sejamos o que somos.
É isso! E com essa, acho que encerramos com chave de ouro esse papo de uma forma to-tal-men-te chique! (risos)
Ana Cañas: [risos] obrigada, querida!
Ana, muito obrigada pelo nosso papo. Adorei conversar com você, continuaria tranquilamente filosofando e falando sobre o álbum, e te desejo muito sucesso que vai vir aí com shows também, né?
Ana Cañas: Vão vir dois shows: o show com a banda e, pela primeira vez na minha vida, vou fazer um show sozinha voz e violões, tocando um Martin Taylor e uma Gibson, contando a história dessas músicas. Quero fazer um show onde eu possa ter muita intimidade e contar essas histórias que estou contando aqui pra vocês, jornalistas, pro público também saber, tipo “Amiga, Se Liga” e “Do Lado de Lá”. Depois de 22 anos, tô criando coragem aqui, vou encarar e vou fazer!
Se um deles for aqui em São Paulo, estarei presente, pode ter certeza!
Ana Cañas: Com certeza! Vai ser nos dias 3 e 4 de maio que a gente estreia em São Paulo!
Maravilha! De algum jeito estarei presente. E muito obrigada mais uma vez, Ana, pelo nosso papo, espero que a gente se fale novamente!
Ana Cañas: Obrigada, querida, nos falaremos em breve!
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