A cantora paulista Kell Smith lançou no último mês de dezembro a música “No Final Desse Filme”, uma música que reflete sobre o presente. Com um videoclipe inspirado no filme “De Repente 30”, uma das maiores comédias românticas dos anos 2000, a cantora se prepara para lançar a versão em libras do single, parte de um projeto de acessibilidade que tem adotado nos últimos meses.
Já disponível em todas as plataformas digitais de música, “No Final Desse Filme” traz uma mensagem sobre desacelerar, acalmar um pouco a ansiedade do futuro, revisitar o passado e fazer as pazes com as crianças interiores. Kell Smith, com sua postura calma e filosófica, conversou com o Nação da Música sobre seu processo de composição e de formação como artista, além de comentar sobre alguns projetos planejados para 2025.
————————————– Leia a entrevista na íntegra:
Você já afirmou que todas as canções que escreve falam sobre os sentimentos e a vida de pessoas comuns. Como surgiu essa vontade de falar das vidas e sentimentos das pessoas?
Kell Smith: Acho que isso aconteceu naturalmente. Quando eu componho uma música e a ofereço ao público, ela deixa de ser só minha assim que nasce. Ela passa a ser “nossa”. Entendendo esse processo natural de dividir para multiplicar, percebi essa oportunidade de tornar tudo coletivo. É muito mais sobre o que nos une do que o que nos separa. Isso torna tudo mais leve e gostoso, porque a troca é essencial. Quando ofereço uma música que vocês possam se conectar, ela se torna não só uma trilha sonora da vida de vocês, mas algo que também nos representa. Assim, temos muito mais para dialogar e trocar. A composição vira uma fonte de energia infinita e renovável.
Verdade! Mas fiquei intrigada com essa sua afirmação, porque muitos artistas falam que escrevem sobre suas próprias experiências e que isso, de certa forma, ressoa nas pessoas. Você parece fazer o caminho contrário. É algo proposital? Ou você também se inspira na vida das pessoas comuns?
Kell Smith: Para ser sincera, acho que a vida de ninguém é tão interessante a ponto de escrever só sobre si mesmo, entende? Vejo tanta beleza na vida das outras pessoas, tanto movimento, que seria um desperdício como compositora escrever só sobre mim. Se posso absorver de vocês e ampliar meu repertório, sinto que estou representando algo que é nosso, e não só meu. Entendo quem escolhe o caminho autobiográfico, porque acessar os próprios sentimentos pode ser mais fácil para definir o que gosta, o que representa ou não.
Mas, ao mesmo tempo, viver é estar em constante movimento. Se eu te perguntar se você se identifica com a pessoa que era há 10 anos, talvez você sinta uma nostalgia gostosa, mas, no fundo, ninguém é exatamente o mesmo. Tem uma citação da Adélia Prado que amo, de um poema chamado Leitura, do livro Bagagem: “O que parece estático, espera; o que parece morto, aduba.” Ou seja, tudo está em movimento.
Que lindo! E quais temas você percebe que estão mais presentes nas suas composições?
Kell Smith: Acho que, como representante da música brasileira, me comprometo internamente a ser um reflexo do meu próprio tempo. Se você olhar meu repertório cronologicamente, vai perceber que ele reflete o que estava acontecendo naquele momento. É complexo, porque estamos em plena pós-modernidade líquida, onde tudo pode mudar rapidamente. Com as ferramentas acessíveis de inteligência artificial, o tempo parece ainda mais acelerado. Quando acordamos, já não temos certezas sobre nada.
Sinto que meu repertório reflete esse movimento que vivemos. Minhas músicas abordam desde autoconhecimento e auto-observação até questões mais amplas, como luto e amor. Apesar da leveza que tento trazer, há mensagens fortes ali. Afinal, viver é isso: observar, mudar e refletir os nossos tempos.
Parece que você é quase uma cronista da música.
Kell Smith: Exatamente! Me sinto assim. Talvez isso venha do fato de que aprendi a ler apaixonadamente antes de cantar e compor. Não tem como isso não influenciar. Acabamos sempre nos assemelhando àquilo ou àqueles que amamos.
Sobre sua nova música, “No Final Desse Filme”, você mencionou que foi inspirada na comédia romântica “De Repente 30” (2004) e que fala sobre o valor do presente. Como foi o processo de composição? De onde veio essa inspiração nesse filme tão especial?
Kell Smith: Na verdade, o clipe é que foi inspirado em “De Repente 30” (2004). Eu quis trazer essa estética porque faz parte da minha vida. Como uma garota nascida em 1993, De Repente 30 é muito significativo para mim. E agora, com 31 anos (faço 32 este ano), tudo isso acaba se misturando com minhas vivências. A convivência com meus amigos, como a Polly, a Tainan e a Maju, também influenciou.
Eu percebo que estamos vivendo para nossas crianças interiores. Vivo organizando encontros para brincar de mímica, assistir a filmes e outras atividades que resgatam essa simplicidade. Esse olhar sobre como somos agora os adultos responsáveis por nossas crianças interiores mexe muito comigo. Penso: não é possível que a gente não consiga ser mais delicado, mais atento e trazer mais diversão para a vida.
Essa música reflete esse momento da minha vida. Estamos tão hiperconectados, recebendo conteúdo o tempo todo, que acabamos enxergando o tempo de forma diferente. Parece que todos estão com pressa, mesmo sem saber para onde estão indo. Sempre digo aos meus amigos e às pessoas com quem converso: “Não faz sentido essa pressa toda, se no final do filme, o fim é só isso: o fim.”
Estamos viciados no fim — no fim de um ciclo, no fim de semana, no fim do mês. E, com isso, esquecemos de aproveitar o caminho. Pensei que seria interessante dividir esse sentimento em forma de música. Porque, no momento em que todo mundo ouve tudo e não se lembra de nada, talvez a música, com sua repetição, consiga nos fazer acreditar ou sentir algo mais profundo.
Além disso, essa música tem muito a ver com meu processo de autoconhecimento enquanto pessoa autista. É um tema complexo. Você começa a se questionar: “Sou realmente quem sou ou me tornei algo para caber melhor?”
Seu diagnóstico veio tardiamente ou você já sabia há mais tempo?
Kell Smith: Sou filha de missionários e vivi uma vida itinerante, mudando de cidade a cada ano ou pouco mais. Quando eu tinha uns 7 anos, uma médica da saúde da família introduziu minha família ao conceito de neurodivergência. Com base no meu comportamento e nos relatos dos meus pais, ela trouxe essa possibilidade. Mas, na época, não consegui avançar no processo de diagnóstico por questões de acesso. Sempre que minha família conseguia marcar algo, já estávamos de mudança.
Eu lia sobre o tema e já sabia que era uma criança autista. Não via isso como algo “diferente”, mas não tinha o diagnóstico formal. Só consegui passar por todo o processo de investigação, exames e acompanhamento terapêutico recentemente. Esse processo mudou minha vida, especialmente em relação à aceitação da minha existência. Por muito tempo, questionei se precisava me adequar, diminuir ou parecer “menos estranha”.
Lembro de querer ser normal, mesmo sem saber exatamente o que isso significa. Minha terapeuta e psiquiatra foi essencial nesse processo. Ela me ajudou a ganhar confiança para compartilhar isso com as pessoas e superar o medo de ser questionada ou invalidada.
E você decidiu usar a música para abordar esse tema?
Kell Smith: A música e o clipe de “No Final Desse Filme” são sobre fazer as pazes com minha criança interior. Há uma cena simbólica em que coloco um colar de girassol (símbolo das deficiências ocultas) na minha versão criança, em um ambiente escolar que antes me adoeceu. Hoje, uso o mesmo espaço para celebrar.
No refrão, eu e outros adultos representamos aquelas crianças do início do clipe. Não é mais sobre competição, traumas ou bullying. É sobre reconhecimento e celebração. A música reflete a ideia de que, se no final do filme todos morremos, a vida deve ser vivida com felicidade e propósito.
É mesmo uma mensagem forte, e como você disse, muito atual. Vivemos tão focados no passado ou no futuro que ignoramos o presente.
Kell Smith: Exatamente. É como se estivéssemos sempre correndo, mas, quando chegamos ao objetivo, pensamos: “Tá, e agora?” É esse vazio que vem quando esquecemos de aproveitar o caminho. Com essa música, quis mostrar que a vida é esse frágil intervalo entre nascer e morrer. E que podemos, sim, viver com mais leveza.
Acho que isso reflete muito o momento atual, né? Ao mesmo tempo que não conseguimos, por diversos motivos, aproveitar o presente, também não conseguimos parar quando alcançamos nossos objetivos. Não temos tempo para pensar, para cuidar de nós mesmos, e talvez por isso muitos de nós carreguem traumas da infância.
Falando como parte de uma geração que cresceu na transição entre o surgimento da internet e sua popularização, sinto que é difícil assimilar bem quem somos. Enquanto estamos formando nossa personalidade, precisamos também assimilar o mundo à nossa volta, com outro “sistema operacional”, por assim dizer. É muito complicado.
Acho que essa música reflete bem isso, sabe? Essa ideia do tempo e do valor que ele tem.
Kell Smith: Sua reflexão foi muito sensível, porque vivemos em um momento onde somos julgados pelos resultados que entregamos. Não somos incentivados a viver o processo, apenas a alcançar um resultado final, sem entender que o fim é apenas o fim. Não há nada de tão gracioso nele, exceto contemplar que chegou ao fim. Então, como dar valor ao processo quando o sistema nos cobra somente o resultado?
É um paradoxo, né? Vivemos essa contradição. Achei muito interessante você mencionar “De Repente 30”. Na minha visão, o filme fala justamente sobre o crescimento e esse paradoxo entre passado e futuro. Ele ignora o presente, assim como nós muitas vezes ignoramos. O filme não mostra o caminho entre os 13 e os 30 anos, só foca no antes e no depois, quando o personagem sonhava com os 30. Combina muito com essa reflexão.
E como você é uma “noventista”, acredito que viveu o auge das comédias românticas dos anos 90. O que esse gênero de filme significa para você? O que o conectou a essa reflexão que muitas pessoas podem entender, mas nem sempre conseguem relacionar diretamente?
Kell Smith: Para mim, revisitar esses filmes é como um encontro com algo que fez parte da minha vida. Hoje, ao reassistir, penso: será que ainda faz sentido? Será que entendo de forma diferente? Será que agora consigo compreender melhor as nuances? É um exercício de auto-reflexão.
Esses filmes de comédia romântica, com suas histórias sobre amor e finais felizes idealizados, acabam nos colocando frente a frente com nossa própria evolução. Quando assisti “De Repente 30” pela primeira vez, me conectei mais com a garota de 13 anos que queria ser adulta. Hoje, me conecto muito mais com a mulher de 30, que gostaria de voltar aos 13.
Isso me faz perceber o quanto cresci e me ensina a valorizar mais o processo.
Como artista, sinto que tenho a oportunidade e o aval do público para falar sobre esses temas, seja em forma de música, clipes ou diálogos como este. A música, para mim, é uma ferramenta poderosa de conexão.
Sim, e isso tudo me lembra muito a música. Eu tenho 21 anos, estou nesse meio-termo entre querer fazer 30 e ainda lidar com traumas da infância. É um espaço de indecisão que não aparece em “De Repente 30”. A propósito, você vai lançar um videoclipe em Libras, certo? Como foi o processo? Já há uma data de lançamento?
Kell Smith: Faz algum tempo que comecei a fazer aulas de Libras. É algo que busquei para tornar minha comunicação mais acessível ao meu público. A arte é uma ferramenta de conexão, e seria desesperador não conseguir me conectar com todos. Entendo a necessidade de inclusão, porque vivo essa realidade como pessoa com deficiência.
Para mim, é essencial que minha arte seja acessível. Já lancei versões em Libras de outras músicas, como “Com Acento ou Sem”, que foi divulgada durante o Setembro Amarelo. Agora, faremos o mesmo com esta nova música. É um processo significativo, porque quero naturalizar e ampliar esse diálogo.
Faz todo sentido. Muitas vezes, parece que a indústria musical exclui uma parcela importante do público ao não considerar a acessibilidade como prioridade.
Kell Smith: Exatamente. Nós, artistas, somos a trilha sonora da vida das pessoas, representamos seus sentimentos, sonhos e vivências. É nosso papel transcender barreiras. Considerando que Libras é a segunda língua oficial do Brasil, como podemos priorizar o aprendizado de inglês sem dominar uma forma de comunicação tão essencial para o nosso próprio povo?
Por isso, resolvi colocar a mão na massa e dar o exemplo. Além de incluir intérpretes, quero poder me comunicar diretamente, mostrar que essas pessoas são importantes para mim, independentemente de serem ouvintes ou não.
Para encerrar, quais são os planos para 2025?
Kell Smith: O ano já começou cheio! Teremos muitas músicas, inclusive o projeto “Elis e Tom 50 Anos”, que faço com Daniel Jobim, neto do Tom Jobim. É lindo celebrar artistas que abriram caminhos para todos nós. Também teremos minha turnê autoral, que valoriza artistas locais. Sempre pergunto nas redes sociais quais artistas locais devo chamar para dividir o palco, e isso tem sido incrível.
Além disso, estou escrevendo um livro. É uma fase criativa muito intensa, mas maravilhosa!
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