Nesta terça-feira (12), a cantora e compositora Lotzse lançou o primeiro disco da carreira, “excelentes exceções”, nas plataformas digitais de áudio. O disco de 10 faixas contém músicas já conhecidas da artista, como “arrã” e “o trajeto é minha obra”, e traz uma reinterpretação da música “Maria Maria” (1967) de Milton Nascimento.
O Nação da Música conversou com Lotzse sobre o conceito de “excelentes exceções”, as inspirações para composição das faixas e o processo de produção do seu primeiro disco.
————————————– Leia a entrevista na íntegra:
Você já tem dois singles lançados nas plataformas, certo? Então sua carreira ainda é recente, pelo menos nas plataformas. Mas quando foi que você começou a trabalhar com música? Conta um pouco sobre as suas origens como artista.
Lotzse: Essa é uma pergunta interessante, porque trabalhar com música para mim foi um processo difícil de definir. Eu canto desde muito jovem, sempre soube que queria ser cantora; essa sempre foi minha grande paixão, desde minhas primeiras lembranças de infância. No entanto, sem incentivo da minha família, o caminho acabou sendo mais longo e indireto.
Lembro que, aos 20 anos, surgiu uma oportunidade de trabalhar em uma galeria de arte. Na entrevista, as pessoas gostaram muito de mim e quiseram que eu começasse logo. Naquele momento, fiquei dividida, pensando se aceitar esse trabalho significaria abrir mão do meu sonho de ser cantora. Mas, ao mesmo tempo, intuí que a jornada nem sempre seria direta e que talvez esse caminho pudesse abrir portas inesperadas.
Acabei aceitando o trabalho na galeria, planejando ficar por um tempo para juntar dinheiro e, então, investir no meu primeiro disco. No final, foram sete anos trabalhando em galerias. Durante esse tempo, fui economizando e comecei a produzir o álbum em 2020. Aproveitava as férias para gravar e, aos poucos, consegui realizar o projeto. Foi somente há um ano e meio que saí da Vermelho para focar 100% na música, culminando em um show de pré-lançamento que aconteceu lá mesmo, na Vermelho. Pensar que a jovem de 20 anos não imaginaria que tudo se conectaria dessa forma foi muito especial.
Curiosamente, duas músicas do álbum foram inspiradas por obras de arte com as quais trabalhei, feitas em colaboração com artistas. Ao longo do processo, percebi como os universos da arte e da música se entrelaçam e como essa experiência me inspirou, mesmo sem que eu notasse de imediato. Refletindo, acho que a música sempre esteve se formando dentro de mim, desde o começo. Então, se me perguntam desde quando trabalho com música, posso dizer que foi desde o primeiro dia, mesmo sem perceber.
E qual é a história por trás do seu nome artístico, “Lotzse”?
Lotzse: Não é exatamente um conceito… é como algo que sempre esteve ali, desde que comecei a pensar em ser cantora. Desde muito nova, cada vez que eu falava em gravar um álbum, as pessoas perguntavam se eu usaria um nome artístico, e eu ficava pensando nisso, mas nunca queria inventar um nome completamente diferente como “Antônia” ou algo assim, sabe? Nunca pensei em criar um nome do zero.
Na verdade, essa história surgiu de um apelido que um ex-namorado me deu. Ele costumava me chamar por vários nomes brincalhões, e um deles pegou – o “Lotzse”. Minhas amigas começaram a usar esse apelido para me zoar, e acabou se tornando uma brincadeira interna. Isso foi há muitos anos, e hoje ele é um grande amigo.
Quando comecei no Instagram, eu nem tinha noção de que era uma rede social, usava só para colocar filtros nas fotos e postar no Facebook, como fazíamos no início. Então, coloquei esse apelido no meu perfil do Instagram sem pensar muito, só como uma brincadeira. E assim ficou. Anos depois, ao começar a gravar meu álbum, pensei: “Como vou me lançar? Como Heloísa? Será que preciso de um nome artístico?” Aí percebi que já tinha um: “Lotzse”, um nome que estava comigo o tempo todo sem que eu percebesse. Foi uma coincidência.
Para mim, é importante porque “Lotzse” não é um personagem que eu criei para conseguir me expor ou me apresentar. Eu não sou muito tímida, então não precisava criar uma persona. “Lotzse” é uma parte de mim, e meu processo artístico vem dela, ainda que exista uma parte reservada que é a Heloísa. Tem sido interessante separar um pouco esses dois lados, ainda que todos façam parte de quem eu sou.
Aproveitando que entramos nesse assunto, você mencionou o Instagram e comentou um pouco sobre quem você é como pessoa. Quais temas você costuma explorar nas suas composições?
Lotzse: Para “excelentes exceções”, desde o começo, eu já tinha a ideia de que ele teria 10 músicas: nove composições próprias e uma regravação. Essa visão estava clara para mim, e quando conversei com meu produtor, o Fabio Pinczowski, já tinha isso bem estruturado. Eu sempre escrevi bastante, com muitos textos guardados. Curiosamente, mesmo sendo cantora e sabendo que essa era minha vocação, na época eu nem imaginava que esses textos poderiam se transformar em músicas. Hoje, após todo o processo, já escrevo pensando nisso. Tinha várias melodias e fragmentos de textos, mas a ideia ainda era um pouco vaga e precisava de uma direção.
Para dar forma a tudo isso, contei com o apoio de outras pessoas. Fabio me apresentou ao César Lacerda, que fez a direção artística, e ao Frederico Heliodoro, que também trabalhou na produção. Juntos, fomos construindo os arranjos e definindo a essência do álbum. Na nossa primeira reunião presencial, já que até então tudo tinha sido online, César comentou que percebia uma recorrência no tema das relações entre mulheres nos meus textos. Quando ele disse isso, minha mente se abriu – eu nunca tinha pensado nisso como tema central, mas estava lá desde o início. Esses laços, sejam com amigas, minha irmã ou outras mulheres, são essenciais para minha visão de mundo e como eu navego pela vida.
Assim, “excelentes exceções” acabou sendo essa relação revolucionária entre gerações de mulheres – minha avó, minha mãe, minhas amigas, minha irmã e até mulheres desconhecidas com quem me conecto de alguma forma. Essas relações moldam nossa experiência e sobrevivência coletiva. Quando percebemos isso, César sugeriu que a regravação também deveria refletir esse tema. Na mesma hora, eu soube qual música escolher: “Maria Maria” (1967), original do Milton Nascimento.
Ao ouvir o título, César e Fábio ficaram surpresos, talvez pela quantidade de regravações já feitas. Mas, para mim, essa música sempre foi especial por causa da minha avó. Todos têm uma “Maria” em suas vidas, um espírito que representa força e humanidade. E, mais ainda, “Maria Maria” introduziu uma mensagem feminista essencial ao Brasil, especialmente quando Elis Regina a regravou durante a ditadura, trazendo uma esperança vibrante.
Eu quis interpretar essa música com um arranjo mais profundo e denso, para refletir uma nova perspectiva da luta feminina. Algo que achei fascinante foi como a música permite rearranjos: suas frases, mesmo reorganizadas, mantêm o sentido original. Escolhi um verso que, para mim, sintetiza minha avó e todas as mulheres, que é: “uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta”. Essa frase, tão bela e significativa, quase passa despercebida no começo da música original. Por isso, decidi colocá-la como o fechamento do álbum, quase a capela, como última faixa, dando destaque a essa mensagem que considero maravilhosa.
Enquanto você falava, uma coisa que me veio à mente é que você mencionou muito sobre relações entre mulheres, e isso realmente tem diversas camadas. Não se trata apenas de amizades ou laços familiares, mas sim de como essas relações são abordadas em um contexto mais amplo. Por exemplo, alguns artistas exploram a transgeracionalidade, mas destacando os traumas que passam de geração em geração, enquanto outros se concentram na felicidade nas interações femininas. Me lembrei bastante, enquanto você falava, da Elena Ferrante, uma autora que aborda essas relações e explora com profundidade os altos e baixos tanto nas amizades quanto nas conexões familiares entre mulheres. Gostaria de saber: qual é o enfoque que você utiliza ao tratar dessas relações?
Lotzse: Eu queria compartilhar uma curiosidade: uma das minhas melhores amigas, que é uma pintora incrível, foi quem fez a pintura da capa do álbum, e quando começamos a conversar sobre o projeto, eu contei minhas ideias, e ela logo recomendou que eu lesse Elena Ferrante. Ela insistiu tanto, mas acabei não gostando, o que surpreendeu, porque o tema parecia muito próximo do meu trabalho. Apesar disso, achei interessante ela citar Ferrante, porque realmente há algo semelhante no que estou criando.
Esse álbum tem algo de cíclico – não exatamente cíclico, mas espiralar. Ele explora uma busca pessoal e o poder dos encontros, especialmente entre mulheres, que sempre me transformaram profundamente. Esse processo de busca e encontros foi essencial para eu mesma me encontrar. As relações que tenho com mulheres, sejam amigas, mãe ou avó, são fundamentais para mim, ainda que complexas.
Minha avó, por exemplo, é uma mulher muito forte, rígida, especialmente com as mulheres da família, o que me moldou bastante. Em várias canções, trago histórias inspiradas nesses laços. Uma delas, inclusive, fala de uma amiga passando por uma fase difícil – e anos depois, eu mesma precisei da força dessa música.
Outra canção fala de um conflito que vivi com uma mulher que eu nem conhecia; fomos colocadas uma contra a outra sem razão. Esse ressentimento durou anos e, quando a encontrava, me sentia nervosa. Sempre quis que essa música pudesse ser um desabafo, e até sonhava em cantá-la para ela em algum show. Curiosamente, no ano passado, nos encontramos por acaso, e eu aproveitei a chance para falar com ela. Resolvemos tudo, nos tornamos amigas e até fizemos um filme juntas, um projeto complementar ao álbum. Embora independentes, ambos contam essa trajetória de reconciliação e crescimento.
Esse álbum é uma espiral – ele volta a pontos já conhecidos, mas em novos níveis. Cada ciclo traz uma evolução, nos levando a lugares que ainda não conhecemos. Essa perspectiva de descoberta contínua é o que me move e guia minha música.
Enquanto fazia pesquisa, dei uma olhada nas tuas fotos no Instagram e achei muito interessante o estilo. É bem autêntico, com um toque de filtro granulado. Notei também que a capa do single “o trajeto é minha obra” faz referência ao filme “Sonhos”, do Akira Kurosawa, que é um filme incrível. Além disso, o título é homenagem a uma obra do Paulo Bruscky. Eu sou de Recife, e o Paulo é daqui, então isso me chamou a atenção. Gostaria de saber: quais são as principais referências que você mais gosta de incorporar no seu trabalho, tanto musical quanto visual?
Lotsze: Obrigado pelas fotos! Embora eu não seja fotógrafo, todas essas fotos foram feitas por mim. Tenho algumas câmeras analógicas e sempre gostei de brincar com fotografia. Não sou profissional, mas acho que é justamente essa abordagem intuitiva que dá um toque estranho e único às minhas fotos, especialmente com o efeito granulado. Minha câmera tem um obturador meio quebrado, mas eu até deixei assim porque gostei do efeito. Minhas referências são bem variadas, e acredito que tudo o que a gente vive e absorve em algum momento acaba aparecendo no que criamos.
Trabalhei em algumas galerias, e tive a sorte de ver uma exposição solo do Paulo na Carbono em 2019. Foi um momento profundo, e trocamos várias ideias enquanto ele esteve em São Paulo. Talvez ele nem se lembre tanto de mim, mas as ideias dele me marcaram. Uma obra dele sobre a ditadura, chamada “trajeto”, ficou na minha cabeça. Paulo usava a arte postal como meio, e o próprio envio de uma carta para fora do Brasil já era o ato artístico em si. Quando a carta chegava ao destino, o trabalho estava completo. Esse conceito do percurso como a verdadeira obra me marcou profundamente e me acompanha desde então.
Durante os sete anos em que trabalhei na galeria, fui absorvida pelo dia a dia do trabalho e às vezes me desconectava da minha própria trajetória artística. Mas, olhando para trás, vejo que foi o percurso que importou: foi ele que me permitiu conhecer o Paulo, o Nuno Ramos e tantos outros. Minhas referências se estendem além das artes visuais. Admiro muito a Erykah Badu e a Fiona Apple, por exemplo. O álbum da Fiona, “Fetch the Bolt Cutters” (2020), traz uma faixa chamada “Ladies” que sinto ser a essência experimental do disco. A música é crua e genuína, com sons inesperados, como os latidos dos cães dela.
Essa faixa me inspira pela maneira como trata de relações com leveza e empatia, incentivando a harmonia entre as pessoas. Esse experimentalismo influenciou meu álbum: busquei que cada música tivesse seu próprio clima, desde reggae até rock e sons brasileiros dos anos 70, mas que o fio condutor fosse sempre a experimentação e uma estranheza intencional.
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